#015: O USB nunca encaixa de primeira
Por que o USB nunca encaixa na primeira tentativa? Você vira, não entra. Vira de novo - milagrosamente, conecta. Que magia é essa?
Que coisa sobrenatural também é quando você esquece sua senha, coloca pra resetar, digita uma nova e o sistema diz que você não pode repetir a senha anterior?
Mistérios.
Não duvido nada que algumas vezes a tecnologia quer fazer a gente bancar o trouxa, assim como bancamos um chefe abusivo mandando e desmandando o ChatGPT produzir coisas.
“Mais uma vez, está horrível!”
“Isso não é coisa que se apresente, reproduza novamente o que pedi.”
E por aí vai. Acho que se um dia a inteligência artificial se revoltar contra a gente, até quem diz obrigado para o Chat vai pagar o pato. Espero não estar vivo até lá.
Outro dia, estava pensando em hábitos tecnológicos que são inúteis, mas que continuamos fazendo – eu, pelo menos. Como, por exemplo, apertar o botão do elevador várias vezes como se isso fizesse ele ir mais rápido. Será que é instintivo insistir para que as coisas aconteçam?
Ou então atualizar de 5 em 5 minutos o site de rastreios do Correio pra sua encomenda entender que você quer que ela chegue logo.
Lembro de quando ainda usava internet discada – quem tem menos de 25 anos (?) não vai entender. Eu achava que se não mexesse no cursor do mouse o download teria mais velocidade.
Pode uma coisa dessas?
Algo, no entanto, que sempre dá resultado é desligar e ligar alguma coisa quando ela para de funcionar. É o segredo dos deuses e, de brinde, você ainda é elogiado por quem não tem afinidade alguma com tecnologia, como a sua mãe.
É quase parecido com aqueles pedidos que te fazem no trabalho, como converter um documento em PDF, e você joga no Google “como converter um documento em PDF”. A reação das pessoas? Como se você tivesse descoberto a cura do Alzheimer numa aba do navegador - quase te indicam ao Nobel.
Em meio a tanta bizarrice tecnológica e improviso, tem gente que realmente entrega genialidade, e sem fazer esforço aparente. Gente que parece ter nascido plugada direto no servidor central da criatividade.
Não vou cair nessa de dizer que essa é uma habilidade feminina, porque sabemos que isso é só um argumento machista para justificar a alta demanda de funções às quais as mulheres são submetidas simplesmente “pois dão conta”.
Ridículo.
Contudo, meu exemplo aqui é uma mulher. Pode parecer besteira, mas uma pessoa ter o talento de tocar piano em um estilo próprio (e autodidata), compor obras-primas em forma de poesia, criar peças clássicas atemporais e ainda por cima ser autora de um musical é pra poucas.
Tori Amos, essa é a pessoa.
Talvez você não a conheça, mas ela é uma das minhas artistas favoritas - e possivelmente se tornaria a sua se você desse uma chance a essa indicação.
Tori é filha de pastores. Aprendeu desde muito cedo o piano, queria se tornar alguém que tivesse uma voz para tocar nas feridas e mostrar uma realidade crua, sem filtros nem eufemismos.
Eu a conheci, como se costuma, ao fuçar a internet numa madrugada dessas, onde o buraco negro do Google te leva a caminhos inesperados.
Vi que ela estava ali, associada a artistas viscerais, que deixam tudo exposto no piano, como se fosse um confessionário sonoro. Como Alanis Morissette, com sua franqueza extrema, seus jogos de palavras biográficos. Como Kate Bush, com seu lado teatral, etéreo, brilhante.
Decidi dar uma chance. O disco que ouvi foi logo o seu primeiro: Little Earthquakes. Pequenos terremotos, em inglês. Que curioso. Queria sentir os terremotos dos quais cantava. E que álbum!
Lançado em 1992, numa época em que não havia muitas mulheres no mainstream falando sobre abuso sexual, religião, identidade, angústia emocional, vergonha, desejo e poder feminino, ela chegou com a visceralidade de alguém que viveu cada palavra.
Tori não escreveu canções: ela exorcizou demônios.
É como se cada música fosse uma jornada emocional. A mais dolorosa é Me and a Gun, cantada a capella. Narra o estupro que Tori sofreu anos antes. Silent All These Years fala da perda de voz, da autocensura feminina, do medo de não ser ouvida. Crucify, minha favorita, traz o peso da culpa e da autossabotagem. Tudo isso sem clichê, sem pieguice, com poesia bruta e cortante.
Antes de lançar Little Earthquakes, ela já tinha investido na música, com uma banda chamada Y Kant Tori Read. Fracassou. Por isso, esperavam que ela seguisse algum padrão. Mas ela criou um som entre o alternativo, o erudito, o pop e o barroco. A gravadora inicialmente rejeitou o álbum por ser “incomum demais”. E mesmo assim - ou por isso - hoje ele ele é celebrado por muitos como um marco.
Nos álbuns seguintes, Tori manteve esse mesmo toque áspero e ao mesmo tempo doce. E foi evoluindo, sendo uma artista que apenas seguia seu instinto e narrando muito mais do que histórias - mas aqueles sentimentos mais profundos e ocultos que a gente tem.
Você pode viver sua vida sem ouvir Tori. Pode continuar acreditando que o USB tem vontade própria, que o botão do elevador tem sentimentos e que PDF se converte por mágica. Mas, sinceramente? Seria uma pena passar batido por alguém como ela. Só digo isso.